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Um golpe contra o futuro?

Um golpe contra o futuro?

Escrito por: Renata Queiroz Dutra Professora de Legislação Social e Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Doutoranda em Direito, Estado e Consti Publicado em: 02/08/2016 Publicado em: 02/08/2016

Um golpe contra o futuro?

Renata Queiroz Dutra

Professora de Legislação Social e Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Doutoranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Servidora da Justiça do Trabalho.

 

– Quem estará nas trincheiras ao teu lado?

– E isso importa?

– Mais do que a própria guerra.

[Ernest Hemingway (1899-1961)]

 

Em vias de consumação do golpe midiático-judiciário-parlamentar, observa-se um redirecionamento das forças políticas agenciadoras da crise contra a legislação trabalhista. As propostas, sucessivas e articuladas, estão sendo feita à luz do dia, das câmeras, do povo estupefato.

Não são golpes apenas contra as leis do trabalho. São golpes contra regulação do trabalho de forma ampla: a Justiça do Trabalho, um dos principais agentes de regulação do trabalho do país, não ficou de fora, amargando um corte brutal no seu orçamento, que já deu azo à redução do horário de funcionamento de alguns Tribunais e, em alguns casos, já anuncia um possível fechamento das portas de outros. Os ataques alcançam também as garantias previdenciárias, igualmente o sistema de políticas sociais, os programas de renda mínima, o sistema único de saúde, as políticas educacionais, a maior parte dos projetos de inclusão de minorias.

O ataque, portanto, se direciona àquilo que podemos amplamente denominar de uma rede de amparo social, aquilo que materializa a chamada legislação social. Mas o que querem os golpistas? E, para além deles, qual a transformação mais ampla que se arquiteta e executa, no bojo da qual o próprio golpe contra o mandato da Presidenta eleita é apenas mais uma peça do jogo? Idealizar, defender, lutar por, aprovar, concretizar uma rede de proteção àqueles e àquelas que vivem do seu trabalho constituem passos de um processo histórico complexo, assentado em lutas sociais e que não pode (nem deve) ser atribuído a um representante ou a um partido. O fazer-se da classe trabalhadora em cada momento histórico passa pelas institucionalidades regulatórias que ela logra concretizar, as quais, num processo dialético, são conformadas na luta e, o sendo, conformam luta daqueles e daquelas que trabalham, alimentando horizontes simbólicos e reais de afirmação da classe trabalhadora enquanto sujeito político e agente democrático.

Os direitos, individuais e coletivos dos trabalhadores e trabalhadoras jogam um papel essencial na construção da cidadania e, por consequência, na forma de afirmação desses sujeitos nos cenários políticos que integram: seja em relação ao próprio conflito entre capital e trabalho, seja em relação aos demais debates que se colocam na arena pública, sobre propostas de Estado e de governo. Não se pode pensar o empoderamento político dos subalternos sem pensar nas suas possibilidades alcançadas e almejadas de inserção social. Uma rede de proteção social é elemento constitutivo e essencial a esse cenário e ela se forja a partir de arranjos institucionais e da atuação da própria sociedade civil, por meio de seus agentes de regulação (indivíduos, coletivos, sindicatos, movimentos sociais organizados).

Tais condições institucionais, por suposto, também integram os processos sociais pelos quais se afirmam e moldam as classes, enquanto categoria história (THOMPSON, 2001). O processo que se deflagra em 1988 com a edição da Constituição Cidadã e com o fortalecimento de movimentos sociais que ali eclode e que, a partir dali, se aprofunda, pode ser traduzido num passo inicial de idealização de uma rede de proteção social, paulatinamente conquistada, sempre com base em processos contraditórios e moldados em avanços e recuos.

Não se pode perder de vista, nessa análise, a contradição política que perpassa praticamente toda a existência do nosso Texto Constitucional. De um lado, no caminho constitucional trilhado pela nossa errática democracia, é a Constituição de 1988 a consagradora do modelo de Estado mais avançado em termos jurídico-políticos, e o qual rende mais vigor democrático à categoria do trabalho, seja por sua valorização e por sua proteção social, seja pela renovação dos papeis e das regras do jogo vigentes para os sujeitos coletivos (processo esse que inclui as Emendas Constitucionais nº 20 e 45 e que, evidentemente, não se reputa concluso).

De outro, foi justamente a essa Constituição que foi dado o desafio de enfrentar os influxos do discurso neoliberal, com sua racionalidade colonizadora do Estado, da regulação do trabalho, e da vida mesma dos indivíduos (DARDOT; LAVAL, 2016). Data da década de 1990, portanto, imediatamente após o processo de redemocratização do país, a consolidação dos impactos da reestruturação produtiva pós-fordista no Brasil, com a epidemia de terceirização (DRUCK, 1999), a flexibilização e a desregulamentação das relações de trabalho, a ascensão dos discursos e das políticas neoliberais nas mais diversas searas da sociedade brasileira. Coincidem, pois, com o período de vigência da Constituição de 1988, diversas infiltrações impingidas pelo pensamento ideopolítico neoliberal nas estruturas de nosso Estado Democrático de Direito2.

É, portanto, no bojo da convivência conflituosa, esgarçada e tensa entre o projeto político democrático colocado no horizonte pela Constituição de 1988 e o discurso econômico de matriz neoliberal que passou a ser pautado pelo empresariado e absorvido pelos governos que se sucedem após a década de 1990, que se desenvolve o atual conflito jurídico-parlamentar sobre a Democracia brasileira e que escoa, vigorosamente, para a nossa rede de proteção social aos que vivem do trabalho.

O projeto de sociedade cunhado em 1988 alcançou as massas trabalhadoras brasileiras em sua luta, em suas expectativas e, sobretudo, na sua capacidade de reconhecer-se enquanto sujeitos de uma arena política. O horizonte simbólico inaugurado em 1988 se multiplica geometricamente até formar um eleitorado capaz de reconfigurar o cenário eleitoral brasileiro.

Esses sujeitos, ao passo que se empoderaram em grande medida a partir da concretização, no plano das políticas sociais, de medidas de inserção pouco experimentadas na histórica constitucional do país, como a garantia de acesso à renda (seja a renda mínima, por meio da assistência social, seja a renda advinda do salário mínimo valorizado), à educação superior, às cotas raciais, também assimilam a convivência desses pequenos avanços com as infiltrações do projeto neoliberal, que mostrava suas marcas também nos governos mais recentes.

A inclusão recente proporcionada, portanto, é inarredavelmente limitada e contraditória, na medida em se pautou, sobretudo, na perspectiva do consumo e que conviveu com decisões políticas neoliberais em grande escala. Algum processo de inclusão, antes não experimentado, efetivamente aconteceu e alimentou o horizonte possível de expectativas, ainda que marcadas por esvaziamento de significações políticas (BRAGA, 2013). Entretanto, o avanço de uma racionalidade neoliberal, deveras naturalizada no campo do pensamento político hegemônico, que já acontecia paulatinamente, vê no golpe uma peça chave (mas apenas uma peça) para o aprofundamento desse processo em curso.

Dardot e Laval atentam para a concepção muito particular de democracia que passa a ser pautada pelo projeto neoliberal, o de que “o direito privado deveria ser isentado de qualquer forma de controle, mesmo sob a forma do sufrágio universal” (2016, p. 8), consolidando um sistema que, longe de consolidar o mero laissez-faire econômico, impediria a própria autocorreção da sua trajetória, dada a desativação do jogo democrático. O neoliberalismo estaria a demandar o que denominam os autores de “pós-democracia”.

À luz dessa racionalidade, não é curioso pensar que o passo imediatamente subsequente ao desrespeito às regras do jogo democrático, ao sufrágio popular e mandato da Presidenta eleita, seja o desmonte da rede de proteção social que, criadora e criatura, é responsável pela afirmação da massa trabalhadora do país como novos sujeitos políticos. Além da liberação do mercado das “amarras” e dos “custos” da legislação trabalhista, as medidas inerentes ao projeto redundam, logo após a desativação das regras do sufrágio, na tentativa de esvaziamento da arena política, também por meio da fragilização de seus sujeitos.

Restrições ao benefício do bolsa família (esse importante regulador do valor do salário mínimo, ainda que por meio de efeitos indiretos e colaterais), propostas de congelamento do salário mínimo, defesa da terceirização plena no nosso mercado de trabalho, proposta de prevalência do negociado sobre o legislado (e vale aqui o registro da adesão do Poder Judiciário ao projeto golpista, mediante discurso de posse do atual presidente do Tribunal Superior do Trabalho), propostas do próprio Ministro interino da Saúdo no sentido de que se extinga/limite o âmbito de abrangência do SUS, propostas do governo interino de que se amplie a idade de aposentadoria para 75 anos, de que sejam passados em revista todos os doentes e inválidos desse país, para economizar gastos “indevidos” com a Previdência Social; cortes no orçamento da Justiça do Trabalho.

A centralidade do trabalho e da questão social nos é ensinada pelos grandes opositores do sistema trabalhista de proteção. A experiência de trabalho protegido, a garantia de uma rede de proteção social de amparo à miséria e ao não-trabalho é estruturante de um determinado modo de ser da classe trabalhadora e alimenta seu horizonte político, sua habilitação para a disputa na esfera democrática. Anima um determinado modo de ser da própria classe, em sua conformação histórica.

O golpe qualifica-se como tal não só por ser peça chave de um projeto mais amplo de desertificação das arenas democráticas e eliminação das mínimas formas de controle do capital, mas também porque se consuma não apenas dispensando a necessidade de disputar o voto e a consciência dos trabalhadores. Mas porque prossegue no sentido de anulá-los enquanto atores políticos e anular também os espaços por meio dos quais poderiam se insurgir. Primeiro desconsiderando seu voto e rasgando o projeto que elegeram. Em seguida, desmontando a estrutura social que, por primeiro, os fez experimentar como veste a palavra cidadania, e interrompendo seu processo de emancipação política, ainda tão incipiente.

A ruptura institucional que se desenha, portanto, transcende a disputa partidária tão visceralmente explorada no âmbito midiático e, em muito maiores proporções, investe sobre a arquitetura social e democrática da Constituição de 1988, projetando, ao cabo, a aniquilação da própria capacidade de resistência e atuação da classe trabalhadora. Em outras palavras, no bojo desse projeto, disputa-se um lugar político para a classe trabalhadora brasileira, ainda que para isso seja preciso rasgar a Constituição, em suas diversas matizes.

A reflexão de Habermas, ao ponderar a respeito dos impactos da reestruturação da economia neoliberal, a longo prazo, converge com o que sustentam Laval e Dardot, embora sob uma semântica distinta. Habermas vislumbrava nessa reestruturação uma política de mudança de polos, na qual seriam a sociedade mundial passaria do polo das formas políticas de regulamentação para o polo dos mecanismos de mercado. Todavia, ponderava o autor a respeito do caráter irreversível dessa mudança, na medida em que a troca de polos contribuiria para a perpetuação dos mecanismos de mercado em detrimento de outros polos “na proporção que uma mudança política se torna tanto mais difícil quanto menor for o espaço de ação política de forças de controle sistêmicas, indispensáveis para uma eventual correção da rota iniciada” (2007, p. 391).

No caso brasileiro, a substituição das formas políticas pelos mecanismos de mercado, já anteriormente iniciada, encontra no golpe uma medida de ruptura que lhe é peça chave. Entretanto, prescinde para o estancamento da arena política que é inerente ao projeto neoliberal, de uma ruptura mais ampla, que mine capacidades de resistência e formulação política ao tempo que ampliam o domínio e reduzem a um mínimo as amarras do capital. O que assombra, nesse projeto tão perverso quanto bem concatenado é o risco que se coloca ao futuro, como ponderou Habermas: Mesmo quando cada nação decide “de forma consciente e democrática” a ser um “estado de concorrência” mais do que um “estado de bem-estar”, tal decisão democrática teria de destruir seus próprios fundamentos caso ela se encaminhasse para um tipo de organização de sociedade no qual se tornasse impossível

rever tal decisão e eventualmente anulá-la por um caminho democrático (2007, p. 391).

O golpe, peça chave do projeto neoliberal para o Brasil, revela a ausência de compromisso democrático das novas racionalidades capitalistas e, mais do que romperem com as regras do jogo eleitoral, projetam destacadamente por meio do desmente da rede de proteção social, a supressão de possibilidades democráticas para o futuro.

 

REFERÊNCIAS

BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

DRUCK, Maria da Graça. Terceirização: (des)fordizando a fábrica. São Paulo: Boitempo, 1999.

HABERMAS, Jurgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007.

THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.




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