A aprovação da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual da Argentina causou um alvoroço nos proprietários dos meios de comunicação da América Latina. Motivo: o receio de que a iniciativa argentina fosse copiada por outros países vem se concretizando. Uruguai, Equador, Bolívia, Chile e até o México estão aprovando legislações para regulamentar o setor, ou parte dele. O Brasil... Bem, o Brasil continua sendo a vanguarda do atraso neste campo.
Por Renata Mielli*
O cenário monopolísta da Argentina, assim como o do Brasil, é marcado pelo predomínio de um mesmo grupo econômico, o Clarín, que detém mais de 50% do mercado da TV por assinatura, é proprietário do maior jornal impresso de circulação nacional e de vários outros veículos impressos, de emissoras de TV aberta, rádio, até da produção de papel.
Néstor Busso, presidente da Farco (Fórum Argentino de Radiodifusão Comunitária) e ex-presidente do Conselho Federal de Comunicação Audiovisual da Argentina conta que a luta pela aprovação da Lei de Meios (como ela ficou conhecida internacionalmente) remete a 2004, quando diversos setores populares se unificaram em torno da pauta da mídia. “Tínhamos uma lei imposta pela ditadura militar, em 1978, que além de defasada, era conveniente apenas ao poder econômico”.
Busso lembra que “os grupos concentrados impediam qualquer debate sobre a possibilidade de uma nova lei. No campo popular havia a certeza a aprovação de uma nova lei seria produto da correlação de forças. Por isso, o grande desafio era construir força social e política para fazer esse debate. Naqueles momento, isso parecia um sonho impossível. Nem imaginávamos que as alianças que construiríamos permitiriam mudar aquela velha lei da ditadura”.
Essas alianças foram construídas em torno da Coalizão por uma Comunicação Democrática que reunia várias organizações da sociedade argentina. Depois de muito debate, foi aprovado os 21 pontos por uma Lei de Radiodifusão Democrática, em 2004.
Em 2008, os 21 pontos foram apresentados pela Coalizão para a presidenta Cristina Kirchner na Casa Rosada. Cristina recebeu a proposta e se comprometeu a encampá-la. Enfrentar o poder da mídia não é tarefa simples, e muitos chefes de Estado se curvam a ele. Por isso, Cristina de Fernandes Kirchner foi audaciosa. A partir da mobilização de movimento sociais de trabalhadores, juventude, acadêmcios, de comunicadores, da cultura e do esporte seu governo assumiu a iniciativa política e foi à luta para aprovar a proposta.
Na ocasião da apresentação do projeto, Cristina disse que esperava, com aquela iniciativa “que ninguém acredite que possa ser dono da palavra, do pensamento e da expressão de todo um povo", e afirmou que mudar a legislação era "uma dívida da democracia". Ela afirmou, ainda, referindo-se a construção da democracia na argentina que é fundamental que "cada um aprenda a pensar por si mesmo, e não como indicam um rádio ou uma TV".
A mídia argentina e de outros países iniciaram uma guerra contra o governo, dizendo que a proposta tinha o objetivo de censurar os meios de comunicação e impor uma ‘lei da mordaça’. Apesar da campanha midiática contra a iniciativa milhares de argentinos saíram às ruas em várias oportunidades para manifestar seu apoio à lei. Um ato com mais de 40 mil argentinos aconteceu em frente ao Senado para acompanhar o debate sobre ela. “A lei teve grande legimidade e respaldo popular, mas na mídia sempre aparecia como ‘a lei K’, de Kirchner, como se fosse imposta pelo governo”, comenta Busso. “Não é uma lei de meios, como gostam de chamar. Ela apenas regulamenta o uso do espectro radioelétrico e define regras para a sua exploração", esclarece.
A lei foi promulgada em outubro de 2009, e foi imediatamente interpelada judicialmente pelo Clarín. Entre os vários artigos que tiveram sua constitucionalidade questionada estavam os famigerados 45, que definia quantas licenças nacionais e locais cada grupo econômico pode ter, e o 161, que determinava aos grupos a devolução das licenças que ultrapassassem os limites previstos.
Depois de quatro anos de batalha judicial, a Suprema Corte da Argentina declarou os dispositivos constitucionais. A pressão popular, avalia Busso, foi fundamental para a conquista – 50 mil pessoas marcharam do Congresso até Tribunales para cobrar que a Justiça colocasse a lei em vigência.
“O resultado deste processo é uma lei com legitimidade, devido à participação popular e aprovação com ampla maioria, e qualidade institucional, por contar com controles e participação popular”, pontua. “A lei é uma conquista do povo argentino, pois trata a comunicação como direito humano e não como um simples negócio”.
Para o professor da Universidade de Buenos Aires e da Universidade Nacional de Quilmes, Martín Becerra em toda a América Latina, a ausência de regulação forma o que alguns autores chamam “sistema ‘politicamente dócil’ de comunicação”. “São sistemas concentrados, pouco regulados e carentes de uma voz pública que não seja comercial e que não se reduza à propaganda governamental”, disse.
Ele considera que não há lei perfeita, que abarque e solucione todos os problemas do setor. As leis aprovadas no continente buscam, ao seu ver, reduzir os danos à democracia causados pela falta de regras, limites e transparência no setor. “A lei tem importantes objetivos de caráter inclusivos, porque permite o acesso de organizações sem fins de lucro às licenças e impõe limites de concentração, que são até moderados. Também criou uma autoridade pública para garantir a aplicação da lei, a Afsca, que tem inclusive presença de forças da oposição, uma coisa que é inédita na história da argentina. Garante a presença de veículos estatais. Agora, temos problemas. A aprovação de uma lei não resolve por decreto a falta de diversidade e pluralidade. E ainda trás novos desafios a serem enfrentados”.
Segundo Becerra, a missão de transformar a lei em realidade concreta é muito complexa. “Não se muda nada apenas aprovando leis se não há políticas públicas que se somem a elas”, sentencia. “Trata-se de uma estrutura muito arraigada, difícil de alterar”, acrescenta. “É uma questão de maturação política”.
Néstor Busso completa dizendo que as organizações sem fins de lucro não vão ocupar os 33% do espectro a elas reservada porque a lei assim estabelece. “É necessário que os canais de televisão e rádios comunitários disputem estes espaços, agora com o apoio da legislação. É preciso ter claro que existe uma estrutura privada e uma cultura privada que precisa ser superada”, avalia.
Para Busso “as discussões sobre o futuro estão abertas sob o guarda-chuva conceitual de que os monopólios midiáticos são prejudiciais para a cidadania, para a democracia e até para a saúde mental dos usuários. A batalha de ideias, ainda que não tenha terminado, teve avanços importantes, mas a desconcentração implica, também, uma batalha econômica”.
*Renata Mielli é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB. É secretária geral do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, secretária geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação.