Toda semana, pelo menos 30 pessoas procuram Iara Francisca da Silva ou uma de suas sócias para trançar os cabelos ou fazer outro tipo de penteado que valorize a estética negra. “A maioria mulheres”, explica a brasiliense que, há 20 anos, trabalha no ramo, em um salão de beleza étnico localizado no Conic, no centro do Distrito Federal.
Iara conta que a ideia de se especializar em penteados afro surgiu fluidamente, já que, desde criança, tranças, black powers ou cachos poderosos eram feitos dentro de casa. “Eu juntava ali com minhas irmãs, primas e tias, e a gente mesmo trançava o cabelo uma da outra, arrumava do jeito que queria. Naquela época não tinha salão pra isso, era uma dificuldade arrumar cabelo.”
Enquanto trança a cabeleira de quem visita seu salão, Iara coloca “amor e dedicação” no penteado. Mas há outros ingredientes nessa receita. Quem senta na cadeira do salão de Iara integra a resistência à cultura imposta e constrói uma imagem negra que se contrapõe à representação dominante nas sociedades ocidentais.
Iara Francisca da Silva, cabeleireira
“A autoestima de negros e negras é frequentemente atacada com a reprodução de estereótipos depreciativos por parte da grande mídia. Acredito que ao valorizar a estética negra, desde o cabelo afro até às manifestações artísticas negras, seja uma forma de trabalhar a autoestima dos negros e negras e, consequentemente, uma ferramenta de empoderamento do povo negro”, afirma a mestre em Sociologia, Vanessa Patrícia Machado Silva.
Mas o processo para que a negra e o negro se empoderem através da estética, na maioria das vezes, é complicado e dolorido.
“Eu passei toda a minha infância e adolescência achando que uma pessoa negra não poderia ser bonita. Sempre fui uma das poucas crianças negras da escola, mesmo em uma cidade, no interior de Minas, que tem uma população negra bastante grande. Sempre achava que minhas coleguinhas brancas eram sinônimos de beleza. E sempre que me interessava por algum colega, sabia que ele não era pra mim”, conta a dirigente do Sindicato dos Jornalistas do DF e feminista negra, Leonor Costa.
A mineira de Paracatu conta que só após os 20 anos se reconheceu como “uma mulher bonita”. “E, além disso, ser uma mulher independente e capaz de atuar de igual pra igual os espaços profissionais e políticos.” Com 41 anos, Leonor, que esbanja beleza com seu penteado estilo black power, diz que o processo de libertação e reconhecimento ganhou corpo após a militância e a leitura. “Percebi que havia algo errado nos meus sentimentos e foi quando comecei a me dar conta que aquilo era fruto do racismo histórico ao qual somos submetidos. Deixar o cabelo ficar natural foi um processo importantíssimo pra mim. A gente pensa que é só uma opção estética, mas é também um ato político”, afirma.
Leonor Costa, dirigente do Sindicato dos Jornalistas do DF e feminista negra
Joanna Alves, que é 15 anos mais jovem que Leonor, também é vítima da cultura eurocentrista. Somente de oito anos para cá, Joanna, de 26 anos, expôs com orgulho seu cabelo natural. “Surgiu uma nova mulher. É muito mais que um cabelo. Hoje sou empoderada”, diz com alívio. Filha de pai negro e mãe branca, a jornalista sindical diz que “não se reconhecer na mãe foi a primeira dificuldade da vida”. Mas os desafios continuam. “Depois que eu assumi quem eu sou, o racismo ficou ainda mais flagrante. Associam meu cabelo black power à sujeira, à falta de higiene. Dão risada no meio da rua”, conta sem se abalar, já que, como se autoentitula, hoje é “empoderada”.
O verbo empoderar – que dá principalmente às minorias sociais a possibilidade de enxergar em si o que há de melhor e lutar por seus direitos – não foi adotado como adjetivo apenas por Joannna. Para a socióloga Vanessa Machado Silva, “ao usar o cabelo crespo, uma mulher negra está se recusando a aderir a um padrão de beleza branco, e consequentemente está se posicionando de modo autônomo politicamente”. Ela ainda afirma que a valorização da estética negra atinge outras esferas. “Coletivos e grupos negros ao organizarem certos tipos de eventos com estética afro, estão, ao mesmo tempo, posicionando-se politicamente contra a violência policial, contra a marginalidade social.”
Joanna Alves, jornalista (à direita)
Para Thyago Negrete, coordenador comercial de uma escola de línguas, não há valorização da estética negra sem que haja o conhecimento da cultura negra como um todo. Aos 36 anos, ele, que também é modelo de uma agência especializada em beleza negra, diz que o sistema político-social “rouba do negro a autoestima”, uma vez que os meios de comunicação apresentam como referência de “poder, sucesso e beleza” majoritariamente pessoas brancas.
“Fui uma criança nos anos 80, e o racismo era muito maior que hoje em dia. Os programas infantis eram todos com brancos, as pessoas importantes desses programas eram brancas, todos os super-heróis eram brancos”, diz. Para ele, embora a valorização do negro – e do ser humano como um todo – fosse ensinada dentro de casa, foi necessário um processo de “desconstrução da cultura”, o que aconteceu por volta dos seus 20 anos. “Fui atrás dos líderes negros da música, da capoeira, da história que não é contada na escola. Tudo isso é que trouxe a essência da beleza negra como um todo. Quando se consegue entender a sua origem, a sua beleza interna, fica mais fácil aceitar a cor da sua pele, o seu cabelo crespo.”
Thyago Negrete, coordenador comercial
Valorização x mercantilização
Atualmente é comum encontrar em centros comerciais artigos relacionados à estética negra, como turbantes, roupas com estampa africana ou colares e brincos robustos. Tais artigos – que também são símbolos de resistência – são vendidos desvinculadamente da dura realidade que assola as pessoas negras, por empresas que têm como donas pessoas brancas.
Para a mestre em Sociologia, Vanessa Patrícia Machado Silva, “em uma sociedade capitalista como a que vivemos, fatalmente a tendência é que as coisas se tornem um produto de mercado”. “Acredito que é possível usar isso a nosso favor de certo modo, quando nós negros compramos dos pequenos empreendedores negros, fortalecemos o modo de produção dos nossos e fazemos com que nossos recursos circulem entre o nosso próprio povo”, soluciona. Mas alerta quanto à utilização desses artigos por grandes marcas: “Acho problemático quando há apropriação cultural, no sentido de que essas grandes corporações lucram e não há nenhum retorno às pessoas negras”.
Em 2016, o famoso baile de gala e fantasia da Vogue Brasil, um pré-carnaval recheado de pessoas ricas e famosas – e brancas –, gerou polêmica ao eleger como tema “Pop África”. Integrantes do movimento negro dispararam críticas à iniciativa, denunciando a utilização da cultura africana, que sofre com a segregação, o racismo, a opressão social, como simples adereço. Para a blogueira Rafaela Venturim, do Sigamos Juntas, “a África, o continente africano, não é um elemento pop a ser vendido, comercializado ou explorado dessa maneira”. Já a ativista feminista negra Stephanie Ribeiro questionou em publicação no Huffpost Brasil: “Vimos os convidados fazendo do cabelo crespo um acessório, um fetiche ocasional. Anos de imposições estéticas baseadas no cabelo liso como padrão desejado, capas de revistas com celebridades, atrizes, cantoras, modelos e seus cabelos lisos. Séries, novelas, filmes e bonecas exaltando seus cabelos lisos, e crianças negras crescendo acreditando que nosso cabelo é um grande problema. Então uma mulher branca faz dele um adereço como se fosse um colar, para um evento?”.
Pelo twitter, em 2015, o poeta negro B. Easy publicou: “A cultura negra é popular, pessoas negras não são”. A frase explica o atual cenário. Não é difícil ver os símbolos estéticos da cultura negra sendo apropriados pelo mercado comandado por brancos, que enriquecem sem nada contribuírem para a construção de uma sociedade que apresente equidade racial. Enquanto brancos ricos ficam ainda mais ricos, as pessoas negras continuam liderando negativamente pesquisas sobre escolaridade, violência e mercado de trabalho.
O Atlas da Violência 2017 revela que homens, jovens, negros e de baixa escolaridade são as principais vítimas de mortes violentas no País. Atualmente, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. De acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), no Brasil, um homem negro tem 12 vezes mais chances de ser vítima de homicídio que um homem branco. Aqui no nosso país, jovens negras e negros são as principais vítimas da violência e de assassinatos: 23 mil morrem por ano. Isso sem falar nos salários defasados em comparação ao do branco, na desvantagem no mercado de trabalho e na oportunidade reduzida de garantir alta escolaridade.
Mesmo com os dados bárbaros, negros e negras negam a imposição do embranquecimento e exibem com orgulho tranças, black powers, estampas africanas e outros símbolos estéticos que reforçam sua identidade étnica. Elas e eles resistem, assim como resistiu Zumbi dos Palmares. E, nessa resistência, pouco a pouco, um outro Brasil, racialmente equânime e socialmente mais justo, se constrói.
Fonte: www.cutbrasilia.org.br