Grijalbo Fernandes Coutinho*
Hugo Cavalcanti Melo Filho**
O blog Migalhas publicou, hoje, matéria intitulada "TST: Presidente garante demissão coletiva sem negociação sindical", dando conta de que o Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho, no exercício ocasional da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho, em sede de correição parcial, "garantiu a demissão de 150 professores de uma das maiores universidades de Porto Alegre/RS".
A correição parcial foi requerida em face de decisão proferida por desembargadora do TRT do Rio Grande do Sul que negara a aplicação da regra prevista no art. 477-A da CLT (introduzido na chamada reforma trabalhista), sob os seguintes fundamentos:
“Partindo-se da premissa de que há sim um movimento de despedida imotivada de uma coletividade, a ausência de prévia mediação no plano da representação coletiva do Direito do Trabalho encontra óbice na Ordem Constitucional como apontado na decisão atacada. (...) De resto, a doutrina e jurisprudência pertinentes - a magistrada de primeiro grau transcreve farta jurisprudência sobre a matéria - sempre entendeu pela necessidade da intervenção sindical em se tratando de dispensas em massa, justamente em virtude do grave prejuízo social daí decorrente. Ainda, e tal como assentado pela magistrada de primeiro grau, os princípios constitucionais que sempre autorizaram a adoção desse entendimento permanecem vigentes, a despeito da regra introduzida pelo artigo 477-A da CLT alterada pela lei 13.467/17.”
Em sua decisão, o Presidente do TST entendeu que, para impedir o empregador de utilizar o direito potestativo de dispensa sem justa causa, “a autoridade coatora e a autoridade requerida, contra expresso texto de lei, exigiram o que a lei expressamente dispensa, que é a intermediação negocial do sindicato de classe para as demissões ditas de massa”.
O presidente do Tribunal considerou que os juízes gaúchos estavam a cercear a entidade de ensino "no gerenciamento de seus recursos humanos, financeiros e orçamentários, comprometendo planejamento de aulas, programas pedagógicos e sua situação econômica”, porque impediram-na de realizar demissões nas janelas de julho e dezembro, apenas pelo fato do número de demissões realizadas, “ao arrepio da lei e do princípio da legalidade".
Vê-se que, para o Presidente do TST, a dispensa de empregados é verdadeiro direito potestativo do empregador. Filia-se à doutrina do employment at will, na linha do que se pratica nos Estados Unidos da América, segundo a qual nada impede a dispensa do empregado, ainda que não haja motivo, numa espécie de “denúncia vazia” do contrato de trabalho. Por outro lado, afirma que as decisões tomadas elas instâncias inferiores se deram ao arrepio da lei e do princípio da legalidade. Mas, na verdade, a decisão proferida em correição parcial é que está em confronto com a Constituição da República e com o Direito Internacional do Trabalho, como se pretende demonstrar.
No propósito de ampliar o poder do empregador de despedir, sem causa, os seus empregados, a Lei nº 13.467/17 equiparou, no artigo 477-A, as dispensas individuais e coletivas:
"Art. 477-A. As dispensas imotivadas individuais, plúrimas ou coletivas equiparam-se para todos os fins, não havendo necessidade de autorização prévia de entidade sindical ou de celebração de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho para sua efetivação”.
Desconsiderando o fato de o artigo 7.º, inciso I, da Constituição vedar a dispensa arbitrária ou injusta, a lei trilha o temerário caminho da inconstitucionalidade, pois, ainda que se admitia a necessidade de regulamentação do referido inciso, não é dado ao legislador ordinário legislar em sentido diametralmente oposto às regras constitucionais, as quais, ainda que sejam normas de eficácia contida, não se despem de sua eficácia imediata. Bem diferente da inexplicável omissão legislativa quanto à regulamentação do preceptivo constitucional, por 30 anos, é a tentativa de inserir em lei ordinária regra absolutamente colidente com o mesmo preceptivo.
De outro lado, o artigo 477-A não resiste à aferição de compatibilidade vertical com a Convenção 158 da OIT, o que impõe a paralisação de seus efeitos. É de registrar, com Souto Maior (2017), que a Convenção 158, apesar de denunciada pelo Brasil no governo Fernando Henrique Cardoso, “pode ser utilizada como fonte formal do direito do trabalho seja por força do art. 8º, seja pela literalidade do art. 5º, § 2º, da Constituição”. De igual modo, contraria a Convenção nª 154 da Organização Internacional do Trabalho que determina a negociação coletiva e a participação do sindicato em questões de interesse comum.
Por fim, o legislador, ao introduzir na ordem jurídica a equiparação entre dispensa coletiva e dispensa individual, não levou em conta que a dispensa coletiva é um instituto do Direito Coletivo do Trabalho, que possui princípios, normas, institutos e instituições totalmente diversas do Direito Individual do Trabalho. Vige neste ramo do Direito, como objeto, os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, e os direitos mais elevados da dignidade humana.
A presença do interesse público primário de toda a sociedade impõe a este ramo do Direito uma proteção especial, com a efetiva e necessária participação dos legitimados ou autores ideológicos, entre eles, o Ministério Público do Trabalho, neste desiderato, como gestor do microssistema de tutela coletiva e dos instrumentos de que dispõe para proteger os direitos sociais e indisponíveis dos trabalhadores.” (SANTOS, 2017)
É bem verdade que, até aqui, o direito trabalhista brasileiro não havia se preocupado com o tema. Para além da proteção genérica insculpida no art. 7.º, I, da Constituição, ainda não regulamentado, nada dispunha a ordem jurídica acerca da dispensa em massa de empregados, diferentemente do que ocorre em outros países, especialmente da Europa, em face da necessidade de adequação da ordem interna com a Diretiva n. 98/59/CE do Conselho da União Europeia, de 20 de julho de 1998.
Assim é que havia quem sustentasse “que pelo fato de não existir norma expressa que limite a dispensa coletiva esta poderia ocorrer “livremente”, pois o juiz estaria restrito a decidir dentro da lei (e lei não existiria). Novamente o debate jurídico foi tomado pelo debate econômico e com este se confundiu”(TEODORO e SILVA, 2009).
No final de 2008 e no início de 2009, decisões dos Tribunais da 2.ª e da 15.ª Regiões Trabalhistas reputaram nulas dispensas em massa então promovidas, a pretexto de dificuldades econômicas empresariais, no auge da crise iniciada com a falência do Banco Lehman Brothers. A decisão do TRT 15, no paradigmático caso da Embraer, foi submetida à apreciação do Tribunal Superior do Trabalho, no qual se fixou a tese de que não pode haver dispensa coletiva que não seja precedida de negociação coletiva.
A publicação da Lei 13.467/17, que, em seu artigo 477-A, autoriza a dispensa em massa de trabalhadores, sem qualquer participação das entidades sindicais e sem prévia negociação coletiva, representa, então, absurdo retrocesso.
Ora, o Direito do Trabalho encontra-se fundado em princípios, tendo a mais absoluta compatibilidade com toda e qualquer diretriz principiológica afirmativa dos Direitos Humanos da classe trabalhadora, como se nota, por exemplo, da essência do princípio da vedação do retrocesso social. A observância desse princípio pelo intérprete preserva o núcleo essencial dos direitos sociais já realizados e efetivados, de modo que esses direitos são constitucionalmente garantidos (CANOTILHO, 2003, p. 475). Por incidência desse princípio, extraem-se, também, o princípio da progressividade social (art. 7º, I) e os princípios da proteção e da norma mais favorável (REIS, 2010, p. 10), bem como que se afastam do ordenamento jurídico todas e quaisquer normas violadoras da função do Direito do Trabalho (RODRIGUEZ,1993).
A disposição do art. 477-A, a autorizar a dispensa em massa de trabalhadores, configura explícito rebaixamento das condições gerais de trabalho vetado pelo comando do caput do art. 7º da Constituição da República, do qual emana o princípio da proibição do retrocesso no âmbito das relações de trabalho.
Para além dessa barreira constitucional, existem tantas outras como o princípio da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho como fundantes da República (art. 1º) e o funcionamento da ordem econômica pautada pela valorização do trabalho humano e pela redução das desigualdades sociais (art. 170, VII).
No plano internacional, os pactos sobre Direitos Humanos – com destaque para o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas (ONU) e para as Convenções da OIT – repelem a possibilidade de o trabalho ser tratado como mais uma mercadoria, bem como vedam quaisquer retrocessos sociais, como se configura a permissão de dispensa massiva indiscriminada, sem a interveniência sindical ou negociação coletiva prévia.
Por tudo isso, faz-se necessária a defesa do Direito Constitucional do Trabalho, fiel às suas origens e à sua principiologia protetiva, para afastar do mundo jurídico as interpretações judiciais ou mudanças legislativas comprometidas com o aprofundamento das desigualdades sociais nas relações conflituosas entre o capital e o trabalho.
Se na arena política cabe à classe trabalhadora, organizada em sindicatos e partidos operários, derrotar a “reforma” trabalhista, como uma das expressões ou vertentes da luta de classes contra o despotismo do capital, sob o ângulo jurídico, a “reforma” trabalhista deve ser enfrentada por viés de direito contra hegemônico ao receituário neoliberal. A Constituição de 1988 e o Direito Internacional do Trabalho oferecem rico panorama normativo para afastar os retrocessos sociais presentes na proposta debatida no Parlamento. Ademais, examinar o tema a partir de luzes principiológicas inspiradoras do Direito do Trabalho e do Direito Constitucional do Trabalho muito auxiliará na tarefa persistente de evitar a derrocada da civilização laboral alcançada nos marcos da frágil democracia burguesa.
Os atores responsáveis pelo desmonte trabalhista, incluindo os agentes que deliberadamente ingressaram na instituição com o propósito de liquidá-la por dentro, ou seja, de dizimar o Direito do Trabalho e a Justiça do Trabalho, ainda que, ocasionalmente, ocupem postos-chave na estrutura do Judiciário Trabalhista a lhes permitir decisões como a aqui examinada, não conseguirão impedir o exercício pleno da função jurisdicional pela magistratura do trabalho efetivamente comprometida com o Estado Democrático de Direito.
(*) Juiz do trabalho do TRT 10 desde 27 de abril de 1992. Ex-presidente da Anamatra (2003/2005), da Amatra 10 (1999/2001 e 2001/2003) e da ALJT (2006/2008). Mestre e doutorando em Direito e Justiça pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais-FDUFMG.
(**) Juiz do trabalho Titular da 12.ª Vara do Trabalho do Recife; professor adjunto de Direito do Trabalho da Universidade Federal de Pernambuco; mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco; membro da Academia Pernambucana de Direito do Trabalho. Presidente da Associação Latino-americana de Juízes do Trabalho.
Fonte:www.diap.org.br