No dia 15 de junho, passou praticamente despercebida a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre as ADIs 5685 e 5695. Longe de uma coincidência, isso revela a profunda hegemonia dos interesses empresariais predatórios, os quais se encontram bem representados no STF.
Nos tempos estranhos em que vivemos, este texto busca chamar a atenção para a encruzilhada em que as forças civilizatórias se encontram e para as contradições que uma parte da direita, supostamente racional, tem produzido, tendo o STF importante papel nesse processo.
Os termos “esquerda” e “direita”, que por mais de duas décadas foram tachados pela direita como sem sentido (sob o argumento de que o neoliberalismo era a “única via”), voltaram à moda nos últimos anos, novamente por iniciativa da direta, agora no seu polo extremo. Se é evidente que as disputas e a divisão entre esquerda e direita não haviam acabado, por outro lado, elas não decorrem da definição atualmente atribuída a esses termos pela extrema direita, que propaga uma falsa de polarização como estratégia de atuação política.[1]
Nessa falsa polarização também tem sido incluído o STF. Isso porque, em matéria de direitos civis, o Tribunal tem se comprometido com pautas relevantes como a união homoafetiva. Para alguns, isso tornaria a Corte progressista ou “de esquerda”. Contudo, o STF tem se mostrado repetidamente antagonista dos direitos sociais e até da própria Constituição, quando aborda a proteção social. Assim, a pauta fundamental que unifica a direita, qual seja, a destruição dos direitos sociais, tem sido ativamente adotada pelo Supremo, contribuindo para alimentar seu extremo autoritário, muito embora o STF recentemente venha alegando combatê-lo.
Neste cenário de hegemonia da gestão predatória do trabalho[2], os “aplicativos” estão colocados como discussão central do mundo do trabalho, cujos trabalhadores convivem com a absoluta negação de direitos. Assim, a pauta trabalhista tem consistido basicamente em reconhecer que trabalhadores são trabalhadores, e não empresários, restando esquecidos e até embaçados temas que até bem pouco tempo consistiam no cerne um pouco menos radicalizado da agenda neoliberal. Falar de terceirização e seus limites em um cenário em que nem mesmo um vínculo de emprego intermediado é admitido e em que os trabalhadores são chamados de parceiros comerciais, parece uma discussão fora do lugar. Mas é preciso impedir que os falsos dilemas, cada dia mais deslocados à direita pela sua agenda, nos distraiam.
Sem nos surpreender, no último dia 15, o STF encerrou o julgamento sobre a constitucionalidade dos dispositivos das Leis nº 13.429/2017 e 13.467/2017, que permitem a terceirização do trabalho, independentemente da atividade, ou seja, de forma irrestrita. O STF decidiu pela constitucionalidade das leis, por maioria, sob a relatoria do Ministro Gilmar Mendes. A decisão não surpreende porque a controvérsia sobre os limites da terceirização mudou desde 2017, com a superação da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST) – que já havia flexibilizado a possibilidade da terceirização de atividade-meio mais de 20 anos antes.
A entrada do STF no julgamento do tema, associada ao conjunto da Reforma trabalhista, culminaram em deslegitimar a jurisprudência trabalhista e dar total poder aos empresários para terceirizar. Na ADPF nº 324, julgada no ano de 2018, o Supremo já havia decidido que a limitação da terceirização de atividade-fim violava a livre iniciativa prevista no art. 5º, II, da Constituição Federal, liberando a terceirização de qualquer atividade, mesmo para situações anteriores à Reforma Trabalhista.
A avalanche de medidas contra a proteção ao trabalho parece tornar cada golpe mais do mesmo. Mas não isso não pode banalizado, sobretudo à luz da fundamentação trazida na decisão do STF de 15 de junho. Nela constam ataques ao direito do trabalho, manipulação de argumentos e dados econômicos, mas faltam fundamentos jurídico-constitucionais, contendo ainda a ridicularização da própria Constituição, que o STF deveria proteger.
A rigor, não há debate jurídico-constitucional nas páginas do voto do Ministro relator. As poucas referências ao texto constitucional se dão, a partir de citação da obra de Roberto Campos (economista que serviu à ditadura civil-militar brasileira), para qualificar a Constituição de antiempresarial, utópica e obsoleta diante do contexto de “um desequilíbrio entre posições jurídicas [entre empregado e empregador] que não mais se sustenta, pois a própria premissa de submissão da mão de obra ao capital merece ser revista”. O STF, que tem a última palavra em interpretação da Constituição, em lugar de interpretá-la, revisa seu texto para fazer um juízo de valor negativo em relação ao seu conteúdo. Abstraindo esse “detalhe”, o que o Ministro Gilmar faz é identificar na Constituição uma posição de esquerda utópica, que deveria ser superada para promover a “liberdade” empresarial e, assim, garantir a própria existência do trabalho.
O voto afirma que a reestruturação produtiva se tornou a nova base da acumulação capitalista, que se assentaria na descentralização produtiva e, por consequência, na terceirização. Esse pressuposto de transformação econômica é informado como se não coubesse o estabelecimento de critérios sociais para sua validação, papel supostamente incumbido ao direito e às instituições estatais, em sociedades minimamente democráticas.
Em seguida, o voto caracteriza a jurisprudência do TST que limitava a terceirização de atividade-fim como ativismo judicial; indica que o TST não conseguia definir claramente o que era atividade-fim e o que era atividade-meio – por meio de uma coleção de ementas de julgados não datados e relativos a situações distintas em que o Tribunal, por óbvio, decidiu distintamente – e, por fim, evoca um suposto “julgamento às avessas” de Lochner vs. NY.
Primeiro, o argumento de que a Constituição é “antiempresarial” parte da falsa ideia de que o direito do trabalho é um instrumento de regulação contra as empresas. Pelo contrário, o direito do trabalho impõe patamares mínimos civilizatórios contra os padrões de gestão empresarial que se baseiam na depredação do trabalho, promovem a concorrência espúria e, desse modo, dificultam o próprio desenvolvimento econômico. Ou seja, ao invés de ser um inimigo, o direito do trabalho contribui para o desenvolvimento de formas menos rudes de capitalismo, conservando suas estruturas.
Segundo, é preciso lembrar que a distinção entre atividade meio e atividade-fim veio de uma demanda empresarial, que sempre defendeu a terceirização sob o argumento da necessidade de se especializar nas atividades principais e delegar as acessórias. Curioso que, anos mais tarde, os mesmos defensores da terceirização de atividade-meio para concentração na atividade-fim não vejam sentido em não poder limitar a terceirização de atividade-fim e nem vejam mais possibilidade de realizar a distinção das atividades em si!
Terceiro, o caso Lochner vs. NY, utilizado por Mendes para criticar a Justiça do Trabalho por limitar a prática da terceirização, é um caso de ativismo judicial da Suprema Corte norte-americana de 1905, muito criticado e já superado nos Estados Unidos, no qual se entendeu que uma lei aprovada no estado de Nova Iorque que impunha um limite máximo de 60 horas semanais à jornada dos padeiros (pelos riscos à saúde) seria uma restrição indevida à liberdade de contratação[3]. A pretexto de criticar o que denomina de ativismo judicial e sem que desse conta, o relator mostra a proximidade entre sua linha de raciocínio e a desenhada no caso Lochner vs NY, já que ambos consideram a integridade física dos trabalhadores bem de menor importância.
Em seguida, se dedica o relator a abordar a terceirização e as novas perspectivas de mercado no mundo, asseverando tratar-se de tendência global, cujos “resultados são majoritariamente positivos”. Para afirmá-lo, cita pesquisa produzida por Ives Gandra Martins, que demonstraria comparativo entre taxas de desemprego de diversos países do mundo antes e depois das reformas trabalhistas. Não há referência à metodologia da pesquisa do jurista, tampouco aos marcos que ele teria adotado como reformas em cada país. Prossegue Mendes trazendo as estimativas da OIT sobre a informalidade na América Latina e também no Brasil, a fim de demonstrar que “a informalidade é um claro indicativo de que os agentes de mercado, não apenas empresas, mas também os trabalhadores, estão migrando para a margem do sistema super-regulado que construímos” (grifo nosso), como se fosse a informalidade uma opção dos trabalhadores e não uma ilegalidade praticada pelos empregadores.
Curioso que o mesmo julgador não tenha se valido de diversas pesquisas, baseadas em critérios científicos expostos e fundamentados à comunidade acadêmica, por meio das quais se evidencia que o enfraquecimento do direito do trabalho não aumentou o nível de emprego no Brasil.[4]
Seguindo na sua perspectiva revisionista, Gilmar Mendes abertamente reconhece que “a prática da terceirização coloca em xeque conceitos basilares do Direito do Trabalho tal qual o conhecemos”. Essa conclusão, todavia, não o conduz a ponderar a incompatibilidade da terceirização com a ordem jurídica, mas sim a pensar em “refundar o Direito do Trabalho, instaurando novos pontos de ancoragem ou, no mínimo, reformulando os seus mais fundamentais conceitos” – sem lastrear tal proposta na Constituição Federal, já que essa fora tachada de utópica. O Ministro não poupa a Justiça do Trabalho, que apesar de tachada expressamente de paternalista, para ele “estará diante do grande desafio de coibir abusos, nomeadamente o uso ardiloso da terceirização como expediente de pulverização da cadeia produtiva com vistas a impedir, em qualquer altura do processo produtivo, que alguma empresa arque com os direitos trabalhistas envolvidos.” Ao mesmo tempo, ressalva que, “a rigor, do modelo de produção horizontalizado, terceirizado, não decorrem necessária e intrinsecamente fraudes e ilicitudes”. Trata-se de afirmação refutada por inúmeras investigações que comprovam a relação entre terceirização e, entre outros: trabalho análogo ao escravo, redução de salários, adoecimento, acidentes de trabalho, inclusive fatais.[5]
Ao terminar o seu voto dizendo que chancela a terceirização porque, “enfim, somos chamados a decidir entre a utopia e a realidade”, Gilmar Mendes escolhe, com certeza, a utopia. Ao acreditar em “mãos invisíveis” do “livre” mercado organizando uma sociedade em patamares civilizatórios, e ao supor que haverá desenvolvimento com base na competição espúria entre as empresas, considerando ser possível conter a barbárie apenas com direitos e liberdades individuais, eliminando direitos sociais, o Ministro desenha a utopia da direita. Nada mais utópico ou irreal, para dialogar com o sentido pejorativo que o Ministro dá à palavra, do que achar que está a salvo dos efeitos que o aprofundamento da desigualdade e da exclusão que alimentam a raiva, a ignorância, o obscurantismo e que facilitaram a chegada da extrema direita ao poder, ameaçando, abertamente, os poderes instituídos, inclusive a Suprema Corte brasileira.
Assim, o que a maioria dos Ministros do STF não parece perceber é que a eliminação dos direitos sociais contribui para a ascensão e reprodução da extrema direita autoritária, que ataca os próprios direitos civis e políticos que a direita “racional” diz defender. É contraditório bradar pela defesa da Constituição após uma reunião ministerial, à luz do dia, em que figuras que se tornaram públicas e executoras da agenda de destruição dos direitos sociais ameaçam encarcerar os 11 juízes da Suprema Corte, quando, em seus julgados sobre trabalho e proteção social, a maioria desses julgadores descarta a Constituição e, assim, estimula esse ambiente reacionário e autoritário.
A situação em que nos encontramos tem relação com anos de hegemonia da utopia de que direitos civis e políticos são viáveis sem direitos sociais. A direita que diz prezar por direitos civis e políticos, e que é supostamente racional, deveria perceber que continuar a credenciar essa utopia do “livre” mercado apenas cultivará o ambiente ideal para que forças autoritárias e reacionárias ameacem qualquer proposta civilizatória.
Rememorando a não tão longínqua Declaração de Filadélfia da OIT de 1944 – que nem de longe revoluciona, mas conserva as estruturas do capital – “não há paz sem justiça social”. A experiência histórica traumática do nazifascismo poderia ter servido de ensinamento, como tragédia, à direita que se considera iluminista. Mas a insistência na utopia do “livre” mercado[6] estimula a repetição da história pelo bolsonarismo e seus equivalentes internacionais.
Renata Dutra é professora de Direito do Trabalho da Universidade de Brasília.
Vitor Filgueiras é professor Faculdade de Economia da UFBA e Professor Visitante da Universidade Complutense de Madri.
FONTE: jornalggn.com.br